ConJur – Consultor Jurídico –
Prisão em segunda instância é tema que empolga multidões.
Nos dias de hoje, reacendeu-se a discussão acerca da prisão após condenação em segunda instância, tendo em vista a grita que se ergueu por causa da liminar deferida pelo ministro Marco Aurélio no Habeas Corpus 191.836 — que havia determinado a revogação da prisão preventiva de André do Rap, notabilizado por integrar a liderança da organização criminosa Primeiro Comando da Capital —, cuja eficácia restou revertida pelo plenário do Supremo Tribunal Federal, ao referendar, por maioria absoluta, a Suspensão de Liminar 1.395, de lavra do ministro presidente Luiz Fux.
Embora não seja esse o foco do debate aqui proposto, importa registrar que consideramos equivocado o que decidido pelo pleno do STF, haja vista que a razão jurídica estava com o ministro Marco Aurélio, na medida em que levada a efeito intepretação idônea do artigo 316, parágrafo único, do Código de Processo Penal — conforme redação dada pela lei do pacote “anticrime” (Lei 13.964/2019) —, posto que no caso em julgamento mostrava-se mesmo presente o excesso de prazo, diante da ausência de revisão — pelo magistrado que preside o processo de origem — da necessidade de manutenção da prisão cautelar no prazo de 90 dias, a configurar a materialização de um ato coator sanável por meio do remédio constitucional ajuizado.
Pois bem. A partir desse novo cenário casuístico (antes ocupado mais fortemente pela condenação do ex-presidente Lula), observam-se nos bastidores do Congresso Nacional parlamentares pressionados pela opinião pública, que passaram a rediscutir — de forma açodada — a questão da prisão em segunda instância, descurando-se de lembrar que cuida-se de temática penal de índole constitucional, da mais elevada importância, que afeta a vida de milhares de cidadãos brasileiros que se encontram em iguais condições processuais que André do Rap.
Deveras, revela-se perfeitamente razoável o sentimento de impunidade que se irradia sobre a sociedade brasileira — notadamente no âmbito do Direito Penal — e que decorre da morosidade da máquina do Poder Judiciário em prestar a tutela jurisdicional penal.
Constituinte de 88 optou por regra garantista
Porém, o fato jurídico incontornável é que o legislador constituinte de 1988 optou por adotar regra garantista — no campo dos direitos e das garantias fundamentais — segundo a qual ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença a penal condenatória, ou seja, até o esgotamento do julgamento dos recursos interpostos.
Sabemos que em fevereiro de 2016 o plenário do Supremo Tribunal Federal — ao rejeitar por maioria de votos o Habeas Corpus nº 126.292 — alterou drasticamente sua jurisprudência para afirmar que a partir de então seria possível a execução provisória da pena após a confirmação em segunda instância da sentença penal condenatória, mesmo antes de seu trânsito em julgado.
Além de o placar ter sido de 7 a 4, o julgamento atingiu somente as partes envolvidas naquele processo criminal, à míngua de efeito vinculante da decisão.
Daí a importância maior do desate final — havido em sede judicial em 7 de novembro de 2019 — por meio do julgamento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADC) 43 e 44 — palco próprio para aquilatações de questões dessa magnitude e impacto social —, cujo resultado proclamado, por decisão majoritária de votos (6 a 5), deu pela constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal, que afirma que ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado, em exata harmonização ao que contido no artigo 5º, LVII da Carta da República, a prestigiar o princípio da inocência ou da não culpabilidade.
Dito por outras palavras, a maioria dos membros da mais alta corte de Justiça do país, enquanto guardiã da Carta Magna, nada mais fez do que — no estrito cumprimento do dever judicante — decidir pela procedência dos pedidos formulados nas ações diretas de controle constitucional, que ambicionavam o reconhecimento expresso da constitucionalidade do referido dispositivo processual penal que, em tudo e por tudo, replica, às inteiras, o postulado da presunção de inocência, a rechaçar a hipótese de execução provisória da pena.
E isso, a resguardar, com grau de definitividade e segurança jurídica, dois dos maiores direitos da pessoa humana, quais sejam, o direito à liberdade e o de recorrer até final deslinde da controvérsia penal, a fim de reverter eventual injustiça ou antijuridicidade cometida em primeira ou segunda instância de julgamento.
E o texto constitucional — respeitado entendimento diverso — é muito claro e não comporta flexibilização em sua interpretação, tampouco modificação por intermédio de emenda à Constituição Federal.
Sobre a questão, é eloquente — e vale ser reproduzida — a irresignação do agora aposentado ministro Celso de Mello naquele julgamento: “(…) reflete preocupante inflexão hermenêutica de índole regressista no plano sensível dos direitos e garantias individuais, retardando o avanço de uma agenda judiciária concretizadora das liberdades fundamentais. Que se reforme o sistema processual, que se confira mais racionalidade ao modelo recursal, mas sem golpear um dos direitos fundamentais a que fazem jus os cidadãos de uma república (…)”.
Entrementes, o entendimento favorável à execução provisória da pena — ainda mais em tempos de eleições — ganha contornos de populismo político em nítida subversão da ordem jurídica, tornando tábula rasa um dos mais fundamentais mandamentos constitucionais de proteção do indivíduo, em combate ao arbítrio e ao abuso do Estado punitivo: a presunção de não culpabilidade.
Mencionado comando constitucional foi erigido à categoria de cláusula pétrea, na forma do artigo 60, §4º, IV, da Constituição Federal, ao estabelecer que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais.
Não se desconhece que todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, inclusive para alterarem o texto constitucional, a denominar o poder derivado constituinte, tal como previsto nos artigos 1º, parágrafo único, e 60, da Carta Magna.
Contudo, não se pode perder de vista que o exercício desse poder reformador deve observar os termos e limites expressos ou implícitos contidos na Constituição Federal.
E a Proposta de Emenda à Constituição 410/18, do deputado federal Alex Manente (PPS/SP) — arquivada pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) frente à admissibilidade da PEC 199/19 —, promovia repugnável tentativa de mitigar a presunção de inocência enquanto condicionante da execução da sentença penal condenatória ao julgamento de segunda instância, por equivaler à completa aniquilação do referido preceito republicano, ou, na letra do texto constitucional, em sua abolição.
Confira-se: “Artigo 5º (…) LVII — Ninguém será considerado culpado até a confirmação de sentença penal condenatória em grau de recurso”.
Por outro lado, a referida PEC 199/19, de autoria do mesmo parlamentar e que propõe alterar os artigos 102 e 105 da Constituição para transformar os recursos extraordinário e especial em ações revisionais de competência originária do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, ganha força no Congresso Nacional, mas não tem a propalada aptidão jurídica de desviar-se de similar inconstitucionalidade que maculava a PEC 410/18, haja vista que a proposta define que, em um processo, o trânsito em julgado passa a acontecer logo após a condenação em segundo grau.
Embora o autor da proposta defenda que a alteração constitucional permitirá que as decisões colegiadas proferidas pelo tribunais em segundo grau da Justiça transitem em julgado já com o esgotamento dos recursos ordinários — a conferir uma valorização das instâncias ordinárias do Judiciário, a remoção dos incentivos à interposição de recursos protelatórios, a execução mais rápida das sentenças e a satisfação antecipada dos interesses dos litigantes —, a proposta não será capaz de contribuir para uma maior celeridade e efetividade das decisões judiciais, posto que presente o vício de inconstitucionalidade.
E isso porque a PEC 199/19, por via transversa e notória burla à sistematização constitucional — ao positivar a antecipação do trânsito em julgado para o segundo grau —, também busca, em sua essência. eliminar a presunção de inocência, em flagrante maltrato à sua estatura constitucional de cláusula pétrea e à racionalização do sistema recursal brasileiro, violando, em igual medida, o exercício do postulado constitucional da ampla defesa, mediante inusitada transferência ao réu condenado o ônus da ineficiência do Poder Judiciário.
Assim, ainda que a PEC 199/19, para alguns, pareça conter tese jurídica mais palatável, a iniciativa legislativa representa mesmo uma involução, pois colide com a Constituição Federal e constitui um equivocado regresso a um entendimento jurisprudencial vencido no âmbito do próprio Supremo Tribunal Federal, dissociando-se, a seu turno, do princípio implícito da Carta da República acerca da proibição do retrocesso social, que obstaculiza — segundo a doutrina — a descontinuação dos progressos já experimentados pelos mais diversos extratos da sociedade brasileira, entre eles o princípio da presunção de inocência, cuja alteração somente poderá ser apreciada, votada e implementada por meio de uma nova Constituição, nunca por meio de uma emenda.