ConJur – Consultor Jurídico – 08/007/2020
O contribuinte que, de forma contumaz, e com dolo de apropriação, deixa de recolher ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do artigo 2, inciso II, da Lei 8.137/1990. A tese foi acatada, por maioria, pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal em 18 de dezembro do ano passado.
Críticos na época da votação, advogados tributaristas, criminalistas e constitucionalistas voltaram a criticar nesta quarta-feira (8/7) a decisão do STF, após a prisão do empresário Ricardo Nunes, fundador da rede varejista de eletrodomésticos Ricardo Eletro, por sonegação de impostos.
No antagonismo natural entre o Estado e o contribuinte, segundo tese fixada pelo Supremo, o poder público fez mais um tento. Deixar de recolher tributo, ainda que seja por culpa do governo — ou da sua política econômica — passou a dar cadeia. Não importa se por equívoco, asfixia ou erro do Fisco, agora vira culpa exclusiva de quem não pôde pagar o sócio melhor remunerado de qualquer empresa: o governo. Claro, por decisão dos julgadores escolhidos pelo governo.
Com a ausência do ministro Celso de Mello, o Plenário concluiu o julgamento em sete votos a favor da criminalização e três contra. A maioria do STF declarou que é crime não pagar o ICMS devidamente declarado.
Prisão de Ricardo Nunes
Segundo o Ministério Público de Minas, em operação com a Fazenda estadual e a Polícia Civil, lojas da rede cobravam dos consumidores impostos embutidos no preço dos produtos, como o ICMS. Depois, empresários investigados no esquema teriam embolsado essa quantia.
Para alguns advogados, a prisão do empresário é reflexo da decisão do Supremo de criminalizar o não recolhimento do ICMS declarado e pode se repetir em outros casos — especialmente por conta da crise gerada pela Covid-19. Eles entendem que a decisão estimula prisões como a do empresário. Para outros, a prisão não faz sentido principalmente porque ele não é administrador das empresas.
Segundo Rodrigo Rigo Pinheiro, sócio da área tributária do Leite, Tosto e Barros Advogados, “é o reflexo da decisão do STF de criminalizar o não recolhimento do ICMS — operação própria”. “Houve a ampliação e a capilarização intensa da discricionaridade investigativa (polícia e Ministério Público) sobre os contribuintes. Tal fator é extremamente prejudicial ao cidadão. Isso porque ‘coloca na mesma gaveta’ efetivos criminosos e meros inadimplentes. Não há análise do caso concreto, deixando de lado o predicado da presunção de inocência, quando ausente a necessária prova de ação contumaz e dolosa de apropriação dos recursos.”
Para André Damiani, criminalista especializado em Direito Penal Econômico, sócio fundador do Damiani Sociedade de Advogados,
“certamente a guinada jurisprudencial do STF respaldou os órgãos de investigação criminal para a realização de investigações sobre ICMS não pago mesmo quando declarado regularmente pelas empresas”.
“Isso porque, até então, somente poderia configurar crime de sonegação o não pagamento do imposto mediante algum tipo de fraude. A partir deste novo entendimento do STF, também há crime quando de forma contumaz o empresário deixa de recolher o tributo devidamente declarado. (…) Ao embutir o valor do ICMS na mercadoria, estaria sendo cobrado tal valor do consumidor e, portanto, com apropriação ao não o repassar ao Fisco. O atual momento vivido no país aumenta o risco de o empresariado incidir neste tipo de delito, tendo em vista a crescente dificuldade de se honrar com as despesas do negócio, dentre elas, os tributos”, completa.
Já Marcelo Leal, advogado criminalista sócio de Marcelo Leal Advogados Associados, “o Direito Penal não pode servir como instrumento de cobrança de dívidas do Estado”. “Apenas a ação fraudulenta e dolosa pode ser tipificada como crime. A criminalização do simples inadimplemento do ICMS pode transformar a atuação empresarial em atividade de risco.”
Fernanda Tórtima, advogada criminalista e sócia Bidino & Tórtima Advogados, diz que “empresários que deixaram de pagar ICMS em razão da crise não devem ser atingidos pela decisão do STF, que exige que o não recolhimento seja feito de forma contumaz”. “De qualquer forma, independentemente do caso concreto, soa bastante contraditório um sistema penal que permite extinção de punibilidade por pagamento de tributo e, por outro lado, comporte prisão preventiva pelo crime tributário.”
Daniel Gerber, advogado criminalista com foco em gestão de crises e compliance político e empresarial, sócio fundador de Daniel Gerber Advogados Associados, diz que “a decisão do STF não equipara o devedor ao sonegador”.
“Apenas afirma que o sonegador, por vezes, pode se travestir de devedor como instrumental para a prática de delitos. Nesse sentido, o STF afirmou que o devedor contumaz, que se vale das declarações para jamais quitar o tributo e simplesmente ficar devendo, pode sim estar utilizando-se de tal expediente para uma verdadeira sonegação, caso no qual a criminalização de sua conduta é uma consequência absolutamente esperada. No entanto, é preciso cuidar exatamente da ‘diferenciação delicada’ entre ambas as figuras”, diz.
Para Almino Afonso Fernandes, advogado constitucionalista e ex-conselheiro nacional do Ministério Público, sócio do Almino Afonso & Lisboa Advogados, “o mero inadimplemento de uma obrigação tributária não pode configurar a prática de crime até porque o Direito Penal não pode ser utilizado como instrumento de cobrança”. “Portanto, criminalizar o não cumprimento de uma obrigação tributária é, no mínimo, inconstitucional e fere de morte o Pacto de São José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário.”
Thiago Sarraf, tributarista do Nelson Wilians e Advogados Associados, disse que depois da decisão do STF sobre a criminalização do ICMS declarado e não pago, as empresas devem estar atentas para evitar a responsabilização por tal conduta. “Não é demais lembrar que o período de pandemia, em que houve a paralisação parcial ou total de diversas atividades, culminará inevitavelmente no inadimplemento de diversas despesas, inclusive as tributárias.”
Para Adib Abdouni, advogado constitucionalista e criminalista, “o combate à sonegação fiscal não pode justificar a criminalização generalizada da falta de recolhimento aos cofres públicos do ICMS, notadamente quando se trata de empresa em recuperação judicial, que tem por objetivo viabilizar a superação de situação de crise econômico-financeira”.
Mônica Matsuno de Magalhães e João Vinícius Manssur, advogados da área de Direito Empresarial, dizem que “a decisão do Supremo não dispõe de repercussão geral”. “Tampouco aplica-se automaticamente a casos análogos, presentes ou futuros, uma vez que refere-se apenas ao caso concreto, qual seja, Habeas Corpus originário do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. Ainda assim, conforme a tese fixada pelo STF, há dois requisitos concomitantes à criminalização: o contribuinte é devedor contumaz e age com dolo de se apropriar.”
A Ricardo Eletro informou em nota que a operação desta quarta “faz parte de processos anteriores à gestão atual da companhia e dizem respeito a supostos atos praticados por Ricardo Nunes e familiares, não tendo ligação com a companhia”. A empresa também afirmou que Nunes e seus familiares não fazem parte do seu quadro de acionistas e nem da administração da companhia desde 2019
A reportagem não conseguiu localizar as defesas do empresário Ricardo Nunes, de sua filha Laura Nunes e do executivo Pedro Magalhães, todos detidos na operação.