Estadão – 23/05/2019 –
Plenário do Legislativo do município da Grande São Paulo vira palco para batismo de adventistas e ‘estudo profundo do Apocalipse’.
Uma piscina cheia de água foi montada no plenário da Câmara Municipal de Itapevi. Nela, pastores batizam seus fiéis. “Foi maravilhoso, uma grande benção, a câmara ficou super lotada, com inúmeros batismos e pessoas louvando ao nosso Deus!”, diz a a vereadora Professora Camila Godoi (PSB).
A legalidade do ato divide constitucionalistas ouvidos pelo Estado. De um lado, advogados apontam a violação do princípio da moralidade e da impessoalidade, além da laicidade do Estado, que estaria sendo ferida. De outro, avaliam que a cessão do espaço para uma liturgia, não seria, por si só, uma violação da lei – com a ressalva de que a Câmara não pode ter dispêndios com o ritual.
Em suas redes sociais, a vereadora diz que se trata de um ‘estudo profundo do Apocalipse’, que tem como palestrante, o Pastor Ari Cidral, da Igreja Adventista do Sétimo Dia. O ato também contou com uma emissora de TV ligada à igreja.
Um banner de divulgação do evento, com a foto do pastor, chama os fiéis para ‘as verdades de um novo tempo. “Este convite é apenas um instrumento para chegar até você e dizer que ainda que as notícias sejam desanimadoras, ainda que você esteja atravessando um momento difícil em sua vida, ainda que você não tenha mais sonhos, há um novo tempo para você. No Apocalipse, você vai encontrá-lo”.As piscinas montadas no plenário da Casa são abastecidas com água da própria Câmara Municipal.
São seis eventos da Igreja Adventista agendados entre os dias 19 e 24 de maio. “O Júnior filho do meu esposo Alexandre Rodrigues também se batizou, ficamos muito felizes e agradecidos a Deus!!!”, diz a vereadora, que participou do evento.
Câmara cobra igreja
A Casa relata, por meio de nota, que ‘infelizmente, não dispõe de espaço público adequado a este tipo de evento, e o plenário da Câmara de Itapevi tem sido constantemente requisitado para eventos de médio e grande portes’. “Salientamos que o evento em referência reuniu cerca de 10 comunidades adventistas de Itapevi, que não dispunham de espaço para a realização do evento”.
“Assim que foi informada que ocorreu a prática de batismo de fiéis em piscina móvel desmontável, esta Casa de Leis acionou os responsáveis pelo evento, que se comprometeram a ressarcir os custos decorrentes deste ato”, afirma a Câmara.
A Câmara ainda diz que, levando em consideração a ‘demanda frequente que a municipalidade itapeviense para o uso do seu espaço, a Câmara de Itapevi já preparou Ato da Mesa específico para disciplinar a utilização dos espaços físicos da Câmara Municipal de Itapevi’.
Liberdade de culto x Estado laico
O ato é controverso, sob o ponto de vista da Constituição. O Artigo 19 proíbe a União, os Estados e os municípios de ‘estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público’.
O Estado ouviu seis constitucionalistas a respeito do tema:
Telma Rocha Lisowski, constitucionalista e professora da pós-graduação da Escola de Direito do Brasil (EDB):
“Em minha opinião não se trata propriamente de uma violação do art 19. Esse dispositivo veda à união, estados e municípios estabelecer cultos religiosos ou subvencioná-los. Não me parece que a questão do batismo na câmara municipal se enquadre aí.
Porém, enxergo violação aos princípios da administração estabelecidos no art 37 da Constituição Federal. Especialmente impessoalidade e moralidade.
Pois, como o estado é laico, a realização de cerimônia católica é um ato estritamente privado, não é de interesse público, e desse modo não pode ser realizado com utilização de espaços e recursos públicos
Ou então deveria ser propiciada a realização de cerimônias equivalentes de outras religiões também.”
Paula Salgado Brasil, constitucionalista:
O Brasil é um país religioso, porém o Estado “República Federativa do Brasil” é laico.
O Estado ser laico significa que não pode, na condução as funções administrativas e governamentais, estabelecer privilégios ou subvencionar instituições, interferindo, de qualquer forma, na esfera interna de associações religiosas.
É importante lembrar que, além da Constituição Federal, no art. 5º, incisos VI, VII e VIII e art. 19, o Estado é signatário de diversos tratados internacionais que tratam também da liberdade religiosa, dentre os mais importantes está CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (de 1969) conhecida como PACTO DE SAN JOSÉ DA COSTA RICA, que em seu art. 12 trata da:
Artigo 12 – Liberdade de consciência e de religião
1. Toda pessoa tem direito à liberdade de consciência e de religião. Esse direito implica a liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças, bem como a liberdade de professar e divulgar sua religião ou suas crenças, individual ou coletivamente, tanto em público como em privado.
3. A liberdade de manifestar a própria religião e as próprias crenças está sujeita apenas às limitações previstas em lei e que se façam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas.
O fato ocorrido na prefeitura de Itapevi, tem duas perspectivas: a primeira tem a ver com a liberdade de culto dos indivíduos, que é a exteriorização da crença (incluindo os ritos, cerimônias, locais e outros aspectos essenciais ao exercício da liberdade de religião e de crença) e a segunda o princípio do Estado laico, que veda ao poder público interferir no exercício da liberdade religiosa, ainda que seja majoritária – nem privilegiar qualquer das orientações religiosas.
Houve um grande debate há tempos atrás, sobre a fixação de crucifixos em escolas e repartições públicas – em que o STF reconheceu que não atenta contra a laicidade a manutenção de símbolos cristãos afixados em repartições públicas, pois são questões culturais e que não há agressão a outras pessoas em ter contato com esse simbolismo.
Algumas liturgias são importantes e, em algumas, costuma-se usar prédios públicos, quando, por exemplo, há velórios em determinados locais.
A questão do gasto com água realmente pode ser um problema,se acaso ficar configurado um gasto exorbitante – e o não reuso, por exemplo, dessa água. Mas a cessão pontual de um local público, para alguma liturgia, não seria uma afronta, por si só, da laicidade do Estado(vide exemplo dos velórios).
“É vedado ao Estado e ao poder público subvencionar, estabelecer ou embaraçar o funcionamento de cultos religiosos ou de igrejas em geral. Se houver gastos públicos com a realização de tal batismo, é possível sim que tal situação esteja em desacordo com o preceito de laicidade do art. 19 da CF.”
Vera Chemim, advogada constitucionalista:
“O Estado (incluindo União, Estados e Municípios) é laico e, portanto, não pode praticar atos que venham a estabelecer qualquer tipo de relação com uma religião específica.
Ele, o Estado até pode dar apoio de forma impessoal à realização de atos religiosos em locais públicos ou qualquer outra manifestação nesse sentido.
Excluindo tais hipóteses, o Estado não pode se manifestar, seja direita ou indiretamente, com ações que venham a afrontar a sua natureza de laicidade sob pena de serem inconstitucionais.
Por exemplo: ele pode até permitir que se façam batismos em locais públicos, mas não pode ele mesmo praticar tais atos religiosos.
Essa é a minha interpretação do ponto de vista constitucional.
Sendo assim, a Câmara de Vereadores não poderia jamais praticar um ato dessa natureza, com o agravante de ser em seu espaço físico.”
Adib Abdouni, advogado criminalista e constitucionalista:
“O Poder Público – em todas as suas esferas – é laico e não pode exercer ou demonstrar preferência ou afinidade por qualquer religião ou criar qualquer benefício direcionado a um único segmento religioso, sendo vedada toda forma de institucionalização ou patrocínio de cultos, ritos, liturgias ou crenças religiosas, ainda mais em seus espaços públicos internos, nos exatos termos do artigo 19, inciso I, da Constituição Federal.”
Rodolfo Roberto Prado, professor e advogado constitucionalista
O Estado é laico, conforme preceitua nossa Constituição Federal , não podendo e não devendo jamais evidenciar preferência religiosa, aquele que autorizou o ato religioso poderá responder por ação de improbidade administrativa por violação de princípios e por dano ao erário caso se comprove isso, vale ressaltar que o culto em questão difere de uma outra discussão a do crucifixo nos tribunais que o CNJ entendeu como traço cultural, é totalmente diferente deste caso.
Aílton Soares de Oliveira, advogado constitucional, sócio do escritório A. Soares De Oliveira e Ponciano Advogados:
Não houve nenhum tipo de ofensa ao artigo 19 da Constituição. O texto veda a vinculação das pessoas políticas que compõem o Estado brasileiro a instituições religiosas, dada a laicidade do país.
No caso concreto me pareceu muito mais a utilização do espaço público para um evento, sem nenhuma vinculação do Estado à denominação que lá realizou. A Constituição não veda manifestações sociais em espaço do Legislativo Municipal, até porque tais espaços pertencem em última palavra ao povo e abrigam todo tipo de manifestação. Evidente que deve haver paridade de utilização por outras instituições, seja qual for eventual profissão de fé.
Não me parece ter havido nenhum tipo de tentativa de vinculação de fé ao poder público, que é o que pretende resguardar a Constituição. Inclusive o próprio artigo 19 ressalva as possibilidades de colaboração e interação de interesse da comunidade local.
COM A PALAVRA, O PASTOR ARI CIDRAL
A reportagem entrou em contato com Ari Cidral por e-mail. O espaço está aberto para manifestação.
COM A PALAVRA, A CÂMARA MUNICIPAL DE ITAPEVI
Em relação aos questionamentos referentes ao evento auto-organizado pelo Ministério da Mulher das Igrejas Adventistas de Itapevi que está sendo realizado nas dependências da Câmara Municipal de Itapevi entre os dias 19 a 24 de maio, informamos:
- Esta Casa de Leis apenas cedeu o espaço para a realização do referido evento, como normalmente atende aos pedidos da sociedade civil organizada de Itapevi, o que inclui outras associações e instituições religiosas;
- Importante ressaltar que o município de Itapevi, infelizmente, não dispõe de espaço público adequado a este tipo de evento, e o plenário da Câmara de Itapevi tem sido constantemente requisitado para eventos de médio e grande portes. Salientamos que o evento em referência reuniu cerca de 10 comunidades adventistas de Itapevi, que não dispunham de espaço para a realização do evento;
- Considerando a demanda frequente que a municipalidade itapeviense para o uso do seu espaço, a Câmara de Itapevi já preparou Ato da Mesa específico para disciplinar a utilização dos espaços físicos da Câmara Municipal de Itapevi;
- Assim que foi informada que ocorreu a prática de batismo de fiéis em piscina móvel desmontável, esta Casa de Leis acionou os responsáveis pelo evento, que se comprometeram a ressarcir os custos decorrentes deste ato. No entanto, em se tratando de um evento auto-organizado pela Igreja Adventista, solicitamos que os questionamentos de ordem interna da denominação sejam direcionados à assessoria de imprensa da Igreja Adventista.
- No que tange ao previsto no Artigo 19 da Constituição, esta Casa de Leis entende que não contraria os preceitos constitucionais quando cede seu espaço para entidades religiosas, haja vista o direito à liberdade religiosa estar resguardado no Artigo 5º da Constituição;
- Por fim, a Câmara Municipal de Itapevi reafirma o seu compromisso democrático enquanto Casa do Povo, seguindo o exemplo de outras Casas Legislativas que agem da mesma maneira, a saber: Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (22/04/2019 – culto da Igreja Verbo e Vida; 18/08/2015 – culto por ocasião do centenário do centro universitário da Igreja Adventista; e 14/05/2008 – culto da Igreja Adventista); Câmara Distrital de Brasília (22/05/ 2019) – culto no Plenário da frente parlamentar evangélica); Câmara dos Deputados Federais (29/05/ 2017 – culto no plenário); Câmara do Rio de Janeiro (02/10/2017 – culto); Senado Federal (03/11/ 2017 – Culto Religioso dos Servidores); Poder Judiciário do Rio de Janeiro (23/05/2009 – abertura de espaço ecumênico).