Portal UOL – 21/11/2020 –
O dramaturgo, educador e ativista negro André Luiz Monteiro, de 35 anos, virou personagem de uma história que ele julga parecida com uma peça de teatro. Ele amarga na vida real uma sentença de prisão de um ano e 15 dias por desacato e desobediência contra policiais militares do Batalhão de Choque do Rio de Janeiro.
Artistas, ativistas, políticos, amigos e familiares de Monteiro deram início, nesta sexta-feira (20), a uma campanha pedindo pela liberdade do dramaturgo, conhecido como André Lemos. Primeiro diretor negro a vencer o prêmio Shell, um dos mais importantes do teatro brasileiro, ele enfrenta um embate judicial há quase sete anos
Presente na Aldeia Maracanã, antigo Museu do Índio, na zona norte do Rio, para ensinar teatro e musicalização, o dramaturgo se recusou a deixar o local durante uma ação de reintegração de posse em dezembro de 2013.
Segundo a advogada de defesa, Tabatah Alves Flores, Monteiro estava sentado no chão próximo ao indígena José Urutau Guajajara, que ficou 26 horas em uma árvore protestando contra a desapropriação do prédio, ocupado desde 2006 por movimentos sociais.
Único homem negro lá, ele afirma que foi retirado à força por seis policiais militares que agarraram seus braços e pernas e ainda subiram sobre seu corpo enquanto estava deitado no chão. Ele conversou com o UOL pelo telefone:
“Não achei que o episódio teria o desdobramento que teve. Não foi outra coisa a não ser racismo, outros manifestantes não foram detidos. Era o único negro levado para delegacia”.
André Luiz Monteiro, dramaturgo.
A advogada conta que, enquanto Monteiro estava sentado e calado, alguns manifestantes de pé gritavam as palavras de ordem, como “Au, au, au cachorrinho do Cabral (em referência ao ex-governador Sérgio Cabral que está preso)”, “Vai tomar no **” e “Fascistas”.
Questionada sobre a conduta dos policiais e a sentença de Lemos, A Polícia Militar do Rio informou que ele foi condenado pela Justiça com veredito confirmando sua transgressão. “A Polícia Militar utilizou os meios necessários para a condução e apresentou o envolvido à autoridade judiciária”, diz nota da corporação.
Reviravoltas do processo
Denunciado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro por resistência, desobediência e desacato à Polícia Militar, o dramaturgo foi condenado a seis meses e 21 dias de prisão em janeiro de 2014, mas recorreu em liberdade.
Ele foi inocentado da acusação de resistência. Durante o processo, houve uma discussão se desacato poderia ser considerado crime. E ele passou a ser julgado por injúria e desobediência. Foi condenado por isso.
Na sentença, o juiz Gustavo Gomes Kalil classificou Monteiro como “líder de uma massa de pessoas” e disse que “não ficou comprovada nenhuma agressão por parte dos policiais”. Imagens do dia da prisão, exibidas no documentário “Urutau: Resistência Marakanã” mostram os agentes pisando no braço esquerdo do dramaturgo.
Dois PMs foram ouvidos como testemunhas, algo que, para a advogada, não deveria ocorrer porque eles possuem interesse no processo. Durante a audiência do Ministério Público, ela diz, houve situações de racismo.
“O Ministério Público perguntou se a testemunha de defesa, o doutor Arão Guajajara, era mesmo indígena por usar terno. A promotora dizia que André era um homem negro grande, como se a cor dele influenciasse na força, periculosidade, necessidade de contenção.”.
Condenado por desacato
Entre a primeira decisão e o segundo julgamento, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que desacato poderia ser considerado crime. Por isso, na segunda instância na 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, a sentença por injúria foi revista. Monteiro foi condenado por desacato. Com isso, a pena passou para um ano e 15 dias em regime semiaberto (quando o preso passa o dia fora da prisão e retorna à noite).
Em outubro de 2019, o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Schietti Cruz negou recurso e manteve a pena de Monteiro. No último mês de agosto, Flores recebeu o mandado de prisão e, atualmente, Monteiro é considerado foragido.
“É uma história muito contraditória. Parece até um roteiro [de peça], mas eu entendo também que acaba sendo uma reprodução histórica de que viveram meus antepassados e que vem acontecendo com várias pessoas negras até hoje”, avalia Monteiro.
‘Criminalização de movimentos sociais’
Para Adib Abdouni, advogado criminalista e constitucional, a condenação sinaliza uma criminalização simbólica de movimentos sociais, já que a pena foi severa demais:
“Ainda que a solução mais adequada não fosse à absolvição por falta de provas, a imposição do regime inicial semiaberto revela-se incompatível com o quadro fático desenhado — o que recomendaria a substituição da pena privativa de liberdade por uma restritiva de direitos ou de prestação de serviços à comunidade ou entidades públicas.”
Adib Abdouni, advogado
Procurado para comentar a sentença, o Tribunal de Justiça do Rio apenas enviou arquivo com as fundamentações da decisão. No documento, é dito que “o recorrido utilizou palavras indecorosas e de baixo calão, de forma livre e consciente, a fim de desprestigiar a função pública das vítimas (…) devendo ser responsabilizado por tal conduta”.
Já o STJ, questionado sobre a impossibilidade de condenar pelo delito de desacato, afirmou que a “defesa esqueceu de arguir a questão nas instâncias ordinárias, pois não houve debate no tribunal de origem sobre a alegada impossibilidade de condenar o agravante pelo delito de desacato”. O MP-RJ não se manifestou.
Diretor de teatro premiado
Filho de uma costureira e um advogado, Monteiro é o caçula de três irmãos. Criado em Rio Comprido, na zona norte do Rio, frequentou escolas públicas, entre elas uma militar, e entrou pelo sistema de cotas para o curso de serviço social na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, mas não concluiu os estudos.
Aos 15 anos, tinha entrado para o teatro, apadrinhado pelo ator e diretor Sérgio Britto (1923-2011). Após cursar a Escola Técnica Estadual de Teatro Martins Pena, ele foi voluntário ensinando teatro em comunidades carentes da cidade. Fez várias intervenções urbanas no papel de um palhaço crítico e, em 2016, atuou no espetáculo “Salina, a Última Vértebra”.
Um dos fundadores do Coletivo Artístico Confraria do Impossível, que reúne teatro, audiovisual e literatura, Monteiro foi o primeiro diretor negro a ganhar o Prêmio Shell de Teatro Rio de 2019 pelo espetáculo Esperança na Revolta.
Com a pandemia, ele viu adiado o projeto de inaugurar o Teatro Chica Xavier, primeiro teatro negro do Rio de Janeiro.
“Espero que no futuro a gente consiga diminuir um pouco o racismo estrutural, trazer novas oportunidades para os jovens das próximas gerações. Que a questão negra tenha mais representatividade na sociedade”, reflete.
Artistas pedem liberdade
A defesa aguarda julgamento do habeas corpus pedindo a substituição da pena de prisão por serviços à comunidade.
Sensibilizados com a história, artistas, educadores e ativistas se reuniram para criar páginas nas redes sociais e pedir liberdade para Monteiro. Entre eles estão a atriz Camila Pitanga e o cantor BNegão.
“Resolvi colaborar com o movimento porque me sensibilizei com o caso, por ele carregar uma injustiça forte originada no racismo e por ter se iniciado num ato do André em defesa de uma causa tão legítima como a preservação cultural dos povos indígenas”.
Eduardo Rios, ator e dramaturgo.
Índios alocados
As 22 famílias de índios que antes ocupavam o antigo Museu do Índio, no Maracanã, em 2014, ganharam apartamentos no empreendimento do projeto Minha Casa, Minha Vida na área do demolido presídio Frei Caneca, na zona central da cidade.
A Sececrj (Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa do Rio) informa que iniciou processo de recuperação do prédio do antigo Museu do Índio. Também foram anexadas ao documento novas informações sobre o projeto para a instalação do Centro de Referência da Cultura dos Povos Indígenas. O próximo passo será a análise do Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac), já que se trata de um bem tombado.